Número 37

27 de Janeiro de 2024

DOIS PARES E MEIO DE ASAS

Transforme-se o noticiador na coisa noticiada

MARTHA MENDES

Our Republic and its press will rise or fall together.

Joseph Pulitzer


Há já umas semanas que a principal notícia dos jornais são os jornais. Um dos maiores grupos de comunicação social do país enfrenta uma crise dramática e sem fim à vista: vencimentos em atrasos, risco de despedimento coletivo, jornalistas em greve. Em causa está um grupo que detém títulos como o Diário de Notícias ou a TSF. Nomes históricos e incontornáveis do Jornalismo português. Também por estes dias, um jornalista do Expresso foi agredido num evento organizado por estudantes da Universidade Católica Portuguesa, no âmbito de um ciclo de debates com líderes partidários. O evento – onde o líder da extrema-direita portuguesa foi discursar e responder a perguntas dos estudantes – era de presença interdita a jornalistas. Com eleições à porta, as respostas que um líder partidário tem para os jovens do nosso país não podem ser ouvidas, nem replicadas, pelos jornais. Enquanto uns jornalistas protestam na rua, outros são silenciados em salas onde se molda o futuro do país. Tudo isto é grito – e o grito é o mesmo.

Nas últimas décadas mudou quase tudo na forma de fazer Jornalismo, menos o essencial, que continua a ser sobre cidadania. Fazer perguntas, ouvir as respostas, encontrar a verdade e levá-la aos cidadãos para que eles façam escolhas informadas. Procurar o contexto, para além dos factos. Tentar ligar os pontos, pôr os números a falar, analisar a relação entre a realidade e o que se conta sobre ela. Em suma: o Jornalismo continua a ser sobre a defesa do interesse público. E, por isso, é preciso manter viva a voz de Ryszard Kapuscinski que nos disse que os cínicos não servem para este ofício. Não há que ter constrangimentos em assumi-lo: um bom jornalista tem motivações éticas. Não tem uma profissão, tem uma missão. Segura na caneta como quem segura na arma que defende a Democracia.

Uma das principais e mais antigas estratégias dos ditadores é, através do medo, induzir as pessoas à autocensura. Começamos a calar-nos, primeiro, porque não muda nada. Depois, porque talvez seja melhor. E, por fim, porque talvez seja perigoso. E as ervas daninhas encontram terreno fértil no silêncio – principalmente, no silêncio dos que são a voz viva da Democracia. É quando todos se começam a calar que é mais importante fazer barulho. Em tempos, li uma entrevista ao Carl Bernstein em que ele respondia à pergunta “qual é a coisa mais importante do trabalho jornalístico?”  desta forma: “a coisa mais importante que nós, jornalistas, fazemos é decidir o que é notícia”. Esta resposta é de uma lucidez notável e – se a sua carreira não fosse suficiente – bastaria para justificá-lo com um dos melhores jornalistas da nossa história recente. São os jornalistas que decidem o assunto de que se fala, o que questionar, quem ouvir. Esse é o seu grande poder e a sua grande responsabilidade: orientar a luz para o que importa que as pessoas vejam, alertá-las sobre os temas que importa pensar. Numa altura em que vemos desperdiçar tanto tempo de antena com vozes que não fazem mais nada senão incitar ao ódio, à discriminação, à violência e à intolerância, vejo os jornalistas na rua – a fazerem manchetes sobre as condições precárias que enfrentam há anos, a fazerem notícias sobre o perigoso silenciamento sub-reptício que vai, aos poucos, condicionando o trabalho das redações – e penso que eles estão a honrar a sua missão.

Vi-os na rua, os meus camaradas. Li os seus cartazes de protesto, escritos à mão, por mãos que resistem: O Chat GPT não faz contraditório. Despedir jornalistas é matar o Jornalismo. Pela Democracia. Pela Liberdade das pessoas. O Jornalismo está na rua, para que a poesia a possa continuar a habitar.

Há uma velha máxima jornalística que diz que o jornalista não é notícia e não deve confundir-se com ela. Os americanos resumem a ideia no aforismo newsmen is no news que, por norma, é recomendável seguir à letra. Mas numa altura em que o Jornalismo é tão ameaçado – e com ele a nossa Democracia – está na altura de assumirmos que esta é a notícia do dia. Parem as máquinas. Espalhem a notícia. Transforme-se o noticiador na coisa noticiada.