Número 37

27 de Janeiro de 2024

MÁQUINA DE NADEGUEIROS

Três poemas

LUÍS JANUÁRIO

De Soraia


Ao balcão da Nespresso entrego

o talão 108 da opção

Cafés e Máquinas

e soletro o número do telemóvel

enquanto no ecrã

que não vejo

e no rosto ainda mal treinado

de Soraia

se acende o meu perfil de consumo


A cara tão branca

de Soraia

como a máscara

das raparigas do Norte da China

que se vinham vender aos hotéis de Macau

quando ainda era uma colónia europeia


Os cabelos finos dourados 

carregados de eletricidade estática

a esconder a face

de Soraia


A identificação no uniforme

da rapariga selecionada

“apenas há um mês”

data do curso de formação

e brilha agora

numa prega da camisa

de Soraia


Soraia quer dar tudo

a que o programa me habilita

tudo em troca da compra

de mais 500 cápsulas de café


os despojos de um vistoso conjunto

de unhas de gel

que agora são restos de um céu estrelado

garras quebradiças

penduradas em humildes leitos proletários

nos dedos

de Soraia



No barbeiro


Disfarçado ou marcado?

Pergunta o barbeiro.

Depois de alguma hesitação

compreendo a essência da coisa

e respondo com convicção:

Disfarçado.

Referia-se às patilhas.

E depois

durante o corte

com máquina, navalha ou tesoura,

repetiu várias vezes:

Disfarçado ou marcado?

E eu de todas as vezes respondi:

Disfarçado.




Natação sincronizada


ao Carlos Júlio


Nos histoires d’amour sont les mêmes

Comme si nous avions pratiqué

Dans des piscines parallèles

La natation synchronisé.

(Vincent Delerme)


Pierrot le fou, beau comme tout

Não tínhamos a certeza de ter percebido

mas gostávamos muito


Como do expressionismo abstrato

do dadaísmo da pop arte

do brutalismo das caminhadas no Gerês


As colinas do litoral

onde desembarcava o contrabando

na noite mesmo em que morria o ditador


A estrada de Penacova

com o Távora

e os nossos pais

já não são imortais


A manifestação  do 17 de abril

tu segurando a outra ponta da faixa

voltada para o atónito presidente


A grande imprecação diante da muralha

da cidade de lisboa


A casa da Buraca

limpa como uma tipografia clandestina


A porta do forte de Peniche

feliz por não ter traído

o meu amor por O.


A Rita a nascer em

Rudolf Seiffert Strasse


Olhando de frente

a polícia prussiana


A cara pintada de branco

no Largo de Camões

antes da primeira guerra do Iraque


Até ao fim da natureza do mal


A secretária geral a professora

o fotógrafo da Assembleia

o engenheiro


Um círculo perfeito dardejando

ao por do sol

frente ao pássaro metálico

que iria resistir à pandemia


O “enigma da história” revelado


Tudo a voltar ao princípio

primeiro dia de aulas

dom João terceiro