De Soraia
Ao balcão da Nespresso entrego
o talão 108 da opção
Cafés e Máquinas
e soletro o número do telemóvel
enquanto no ecrã
que não vejo
e no rosto ainda mal treinado
de Soraia
se acende o meu perfil de consumo
A cara tão branca
de Soraia
como a máscara
das raparigas do Norte da China
que se vinham vender aos hotéis de Macau
quando ainda era uma colónia europeia
Os cabelos finos dourados
carregados de eletricidade estática
a esconder a face
de Soraia
A identificação no uniforme
da rapariga selecionada
“apenas há um mês”
data do curso de formação
e brilha agora
numa prega da camisa
de Soraia
Soraia quer dar tudo
a que o programa me habilita
tudo em troca da compra
de mais 500 cápsulas de café
os despojos de um vistoso conjunto
de unhas de gel
que agora são restos de um céu estrelado
garras quebradiças
penduradas em humildes leitos proletários
nos dedos
de Soraia
No barbeiro
Disfarçado ou marcado?
Pergunta o barbeiro.
Depois de alguma hesitação
compreendo a essência da coisa
e respondo com convicção:
Disfarçado.
Referia-se às patilhas.
E depois
durante o corte
com máquina, navalha ou tesoura,
repetiu várias vezes:
Disfarçado ou marcado?
E eu de todas as vezes respondi:
Disfarçado.
Natação sincronizada
ao Carlos Júlio
Nos histoires d’amour sont les mêmes
Comme si nous avions pratiqué
Dans des piscines parallèles
La natation synchronisé.
(Vincent Delerme)
Pierrot le fou, beau comme tout
Não tínhamos a certeza de ter percebido
mas gostávamos muito
Como do expressionismo abstrato
do dadaísmo da pop arte
do brutalismo das caminhadas no Gerês
As colinas do litoral
onde desembarcava o contrabando
na noite mesmo em que morria o ditador
A estrada de Penacova
com o Távora
e os nossos pais
já não são imortais
A manifestação do 17 de abril
tu segurando a outra ponta da faixa
voltada para o atónito presidente
A grande imprecação diante da muralha
da cidade de lisboa
A casa da Buraca
limpa como uma tipografia clandestina
A porta do forte de Peniche
feliz por não ter traído
o meu amor por O.
A Rita a nascer em
Rudolf Seiffert Strasse
Olhando de frente
a polícia prussiana
A cara pintada de branco
no Largo de Camões
antes da primeira guerra do Iraque
Até ao fim da natureza do mal
A secretária geral a professora
o fotógrafo da Assembleia
o engenheiro
Um círculo perfeito dardejando
ao por do sol
frente ao pássaro metálico
que iria resistir à pandemia
O “enigma da história” revelado
Tudo a voltar ao princípio
primeiro dia de aulas
dom João terceiro