Não consigo evitar: se tenho três coisas semelhantes, imagino logo uma série e quero começar uma coleção.
Como é sabido, colecionar não é só juntar, tem de haver ideia e estudo. As considerações que se seguem sobre colecionismo e coleções não têm base antropológica, são só reflexões avulsas e pessoais. Se tu, leitor, não me conheces, nem queres conhecer (porque havias de querer?), nada vais aprender aqui, passa adiante, não te levo a mal, que eu próprio não tenho paciência para confissões e evito o mais que posso ler entrevistas.
Voltando ao assunto, ser colecionador é uma conformidade minha, se acaso não se trata de uma verdadeira enfermidade de que padeço, há anos. E se for doença, apanhei-a em casa, onde havia coleções de tudo, moedas, selos, franquias mecânicas, caixas de fósforos, minerais, conchas, canetas, garrafas, pacotes de açúcar… quê mais?
Sobre a escolha do tema de uma coleção (temos escolha?), começaria pelo óbvio: não convém escolher um objeto que não esteja completamente ao nosso alcance! Eu gostava de colecionar carros clássicos, mas é evidente que não tenho condições para tal. Ao escolher o tema de uma coleção, também não podemos seguir só as inclinações naturais. Temos de perceber bem todas as nossas «circunstâncias». Por exemplo, porque sou bibliotecário, estou «proibido» de colecionar livros. Não devo, não posso, seria demasiado conflituante. Da mesma forma, só comecei a colecionar arte oriental depois de ter sido dispensado do Museu Nacional de Machado de Castro e de ter afastado a possibilidade de uma carreira de museólogo.
Para escolher um objeto de coleção, uma das coisas mais importantes a considerar é se o tema é aberto ou fechado, isto é, se o corpus visado pelo colecionador continua a crescer ou está circunscrito. Aprendi em criança com a filatelia que é emocionalmente difícil para mim colecionar algo cujos limites não sejam certos e conhecidos. Porque a aspiração natural de qualquer colecionador é ter tudo, e isso só é possível dentro de um universo finito, limitado.
Colecionador de arte chinesa
A minha relação com o colecionismo de arte chinesa é assaz paradigmática: quando concorri para um lugar na Biblioteca Central de Macau foi também com a ideia de enriquecer uma coleção de arte chinesa, iniciada, como disse, depois de deixar os museus. Lembro-me bem da primeira peça que aprecei num antiquário da rua de Coelho do Amaral: um aquário magnífico de porcelana de grandes dimensões, com marca de reinado de Qianlong. Pediram-me dois milhões de dólares de Hong Kong, mais ou menos o que eu poderia ganhar em 7 anos como técnico superior na Administração Pública de Macau. Depois, fui percebendo algo que devia ter sido óbvio, mas não o era, que o preço das boas peças de arte chinesa era muito mais alto em Macau do que em Londres… porque os verdadeiros conhecedores estavam lá, e não na Europa. E aprendi que se levavam peças de Londres para vender em Macau. Perante este panorama, andei muito desanimado durante um ano, até que por um mero acaso tomei contacto com as «gravuras de Ano Novo». Era um capítulo da arte chinesa que desconhecia em absoluto, que não aparecia na bibliografia corrente, que os próprios chineses não promovem, nem conheciam bem, sequer. O vocabulário (e a própria semântica) destas gravuras manuais era completamente diferente da arte erudita que eu conhecia e identificava como chinesa, ao ponto de me terem depois levado a teorizar sobre a coexistência de dois «sistemas gráficos» na China: o shu e o hua, o do livro e o da imagem, o erudito e o popular.
As gravuras ditas de Ano Novo materializam-se em peças efémeras, baratas e fáceis de transportar, enfim o objeto ideal para coleção e para estudo. Foi assim que me tornei colecionador de nianhua e de outras xilogravuras rituais, como zhima (imagens para queimar) e fu (amuletos). Hoje, com umas seiscentas peças, creio que tenho a coleção mais diversa que existe na Europa, com mais de 30 proveniências diferentes. Há coleções maiores e mais valiosas, mas são mais limitadas nas origens ou nas épocas que cobrem.
Cheguei a descrever o colecionismo de gravura popular chinesa como «o meu lado B», mas isso agora parece-me redutor, porque não tenho só dois lados: tenho afinal facetas, como todos os pós-modernos.
Uma arte chinesa diferente, vestido de deusa para queimar, impresso em Aberdeen, Hong Kong (1994)
Colecionador de brinquedos de lata
Objetivamente, a minha coleção de brinquedos de lata portugueses não é tão importante como a de gravuras chinesas. Comecei a colecionar tarde, quando estes brinquedos já não existiam, agora tenho de os comprar inflacionados. Claro que isso às vezes me desespera, mas reconheço que faz sentido: de alguns modelos, não se terão produzido em Portugal mais do que umas centenas de peças, ao contrário das dezenas de milhares que saíram das fábricas alemãs e japonesas, antes e depois da segunda guerra mundial. E porque os nossos eram muito mais frágeis e baratos, não foram estimados nem guardados como aqueles. Apesar de os estrangeiros serem mais perfeitos e mais «brincáveis», fizeram-se muitos mais e conservaram-se melhor, logo são mais vulgares. Mas para mim existe um atrativo na rudeza, na simplicidade, até nalguma ingenuidade dos nossos brinquedos.
Gosto de pensar que a minha coleção de brinquedos portugueses é bastante peculiar por mostrar através dele certas realidades da indústria portuguesa: indústria na maior parte sem dimensão, sem marcas, sem catálogos, sem design e sem capital, enfim, Portugal tal qual ele foi, num certo tempo. Se eu algum dia fizer um livro sobre brinquedos estará cheio destas «teses», em que o brinquedo servirá para demonstrar outras coisas. Como aconteceu nos catálogos que fiz de brinquedo chinês e asiático em geral, que serviram para mostrar, por exemplo, como o brinquedo serve propósitos claramente políticos na China ou para evidenciar o papel «matricial» dos brinquedos e jogos orientais. Porque tudo isto nasceu na Ásia, quis eu chamar à exposição que comissariei no Museu do Oriente (2011) Toys «R» Asia e não me deixaram, com receio de processos judiciais com a cadeia americana. Mas a ideia-tese continua certíssima e, modéstia aparte, o nome da exposição era fantástico, não acham?
Elefante de corda em lata pintada (A. Coelho de Sousa, Porto, anos 50) e sua possível fonte de inspiração em lata litografada (NBZ, Nuremberga, 1945-1949)