Uma planta é acolhida num jardim botânico como criança que entra na escola. Vestem-lhe uma farda (uma tabuleta identificativa) e obrigam-na a socializar no mesmo canteiro com plantas de outras origens, com flores e hábitos extravagantes, para se habituar à diversidade e ao respeito pelas diferenças. E aqui, por demasiado esticado, se quebra este paralelismo, pois afinal é para nós, bípedes racionais, que as plantas são assim reunidas em forçado convívio: porque gostamos de classificar e reconhecer; porque apreciamos certas formas e combinações de cores; porque assim materializamos fracções inteligíveis de realidades que nos estão vedadas; porque precisamos (nem todos no mesmo grau) de mitigar a condição humana de exilados da natureza. Porém, também nisto o jardim botânico se aproxima da escola: a crença firme, partilhada por quantos nele trabalham, de que as plantas no jardim (como as crianças na escola) são importantes e devem ser acarinhadas para que desenvolvam todo o seu potencial. Claro que às vezes os jardineiros (como os educadores) podem equivocar-se quanto àquilo que julgam ser o superior interesse da planta (ou da criança), mas quem visita o jardim sente o conforto de estar num local moldado por essa benévola crença.
Descemos agora abruptamente à realidade portuguesa e entramos no Jardim Botânico do Porto, à rua do Campo Alegre: quatro hectares arborizados onde o trânsito atroador da VCI não deixa ouvir o canto dos melros, impedindo que a sombra hospitaleira das árvores exerça em nós o costumeiro efeito calmante. Ainda assim, são as árvores e os arbustos, quase todos etiquetados, que proporcionam alguma gratificação ao visitante capaz de se abstrair do ruído constante. Até Março ou Abril é tempo das camélias: formam sebes altíssimas que se vão enchendo das flores mais variadas – singelas, dobradas, de todas as gradações de cor entre o branco, rosa e vermelho. As árvores caducifólias (faias, plátanos, bordos, carpas, liquidâmbares, ginkgos) pintam-se de Outono, mantendo-se as coníferas (araucárias, pinheiros, ciprestes, cedros, sequóias) no seu verde imperturbável. Os polipódios agradecem a chuva e empoleiram-se viçosos em árvores e muros. Mas esses fetos não precisam da ajuda do jardineiro e as árvores, de um modo geral, vivem bem sem cuidadores. Porque a triste verdade é que o Jardim Botânico do Porto não tem jardineiros: as colecções temáticas (de suculentas, de orquídeas, de plantas carnívoras, de fetos) encontram-se ao abandono, as estufas estão fechadas ou em ruínas, as plantas que morrem não são substituídas, muitas das etiquetas tornaram-se ilegíveis ou identificam plantas que já lá não moram, os canteiros são campos de batalha onde só sobrevivem as plantas mais aguerridas. A única “jardinagem” que lá se pratica é inteiramente motorizada: corta aqui, apara ali e poda acolá, num esforço para conter a anarquia vegetal. Não há conhecimento das plantas nem qualquer apreço por elas; não há meter as mãos na terra nem ver as plantas crescer.
Quem goste de plantas não é capaz de sentir, ao visitar o Jardim Botânico do Porto, que está num espaço onde esse gosto é celebrado e traduzido num conjunto de práticas reconhecíveis. Dir-se-ia que o jardim foi herdado de uma civilização desaparecida, e que nele se celebravam estranhos cultos que os ocupantes actuais desconhecem. Que usos – perguntam-se eles – poderemos dar a tão antiquada e enigmática herança? Que tal acrescentarmos à Rapariga de Bronze (ou lá do que seja) um Rapaz de Plástico Luminoso, acompanhado por uma Rapariga do mesmo material e não menos luminosa, e enchermos bosques e canteiros com Bichos reais ou mitológicos, Pagodes e Arcadas, Plantas de cores garridas, tudo de plástico, tudo gigante, tudo luminoso? E assim se transfigura um inútil jardim botânico num didáctico e esplendoroso “Magical Garden”, em cena para toda a família até Dezembro de 2021, com bilhetes a 10 euros por cabeça (horário nocturno).