Corpo de Deus

1 de Julho de 2023

Um trabalho, uma paixão

JOSEFINA JESUS*

Segundo os Censos de 2021, Portugal tinha 23,4% da população com 65 ou mais anos e apenas 12,9% com 14 anos ou menos. Este “inverno demográfico”, que começou por afetar principalmente os chamados países ocidentais, tem-se alastrado ao resto do globo. A vulgarização dos métodos contracetivos e os crescentes processos de industrialização e urbanização de sociedades até há pouco de caráter predominantemente rural têm impactado negativamente o número de nascimentos. Por outro lado, os avanços científicos nos campos da medicina e farmacologia, bem como a expansão de cuidados de saúde, têm permitido um prolongamento sem par da longevidade. 

Os efeitos demográficos deste processo não são consensuais, mas as várias estimativas realizadas apontam para uma estabilização ou mesmo diminuição da população mundial até ao final deste século. Esta dinâmica populacional tem efeitos em larga escala em todos os campos da vida em sociedade, desde o emprego às migrações e à evolução e grau de integração das tecnologias. Mas os aspetos mais consensuais e pertinentes para países com as características socioeconómicas de Portugal são a sustentabilidade do Estado Social, nomeadamente dos sistemas de pensões, e a pressão que esta inversão da pirâmide etária exerce sobre as famílias, este último o ponto que iremos abordar brevemente neste texto.

A par do acima referido, a estrutura familiar sofreu profundas alterações em Portugal ao longo das últimas décadas. Os núcleos familiares alargados, comuns até à década de 1980, são hoje raros. Pelo contrário, as famílias unipessoais, muitas delas compostas por idosos, representam hoje, segundo o INE, um quarto da totalidade dos núcleos familiares em Portugal. Ou seja, a capacidade para enquadrar o envelhecimento e os seus efeitos na saúde e autonomia dos indivíduos no meio familiar tem vindo a diminuir, sendo essa responsabilidade transferida para respostas institucionais de vária ordem, como os serviços de apoio domiciliário e as estruturas residenciais para pessoas idosas. No caso destas, são conhecidas as insuficiências do país. Muitos idosos acabam por ser alojados em estruturas sem as devidas condições, tanto ao nível das instalações, como de pessoal qualificado e certificado para fornecer o serviço adequado às necessidades dos utentes.

Convém salientar que o trabalho de uma técnica auxiliar de geriatria certificada não se esgota nos estritos termos da sua formação, de resto bastante exigente. O trabalho da técnica auxiliar de geriatria — e uso o feminino porque se trata quase exclusivamente de mulheres, uma vez que só elas têm, por Natureza e educação, verdadeira capacidade para desempenhar as tarefas do cuidado — é um trabalho de afetos e de gestão das relações humanas. É um trabalho duro, mal remunerado e pouco reconhecido a que nos dedicamos por paixão. Um exemplo das dificuldades invisíveis para a maioria é o contacto das famílias com os idosos, que passa a ser pontual, em horas e dias específicos, e já não no contexto de uma vida quotidiana em comum. Em virtude desta alteração, e também para aplacarem os sentimentos de culpa que frequentemente os afligem por terem enviado os seus pais e avós para as estruturas, é muito comum os familiares levarem prendas aos idosos. E, uma vez que a capacidade para armazenar objetos nas estruturas é muito limitada, é habitual essas pequenas prendas serem doces, que as pessoas idosas são muito gulosas. Como é sabido, o açúcar refinado é fonte de vários problemas de saúde graves que afetam os idosos, nomeadamente a diabetes, a hipertensão, o excesso de peso, problemas digestivos, entre outros, cujos sintomas vão dificultar o fluxo e a organização do trabalho já de si complexo nas estruturas e onerar as famílias com custos de tratamentos que se vão somar ao valor da mensalidade.

É uma situação recorrente que exige alguma criatividade às técnicas. Não sendo possível impedir a chegada dos doces às mãos dos utentes, a única possibilidade, uma vez consumado o facto, é o recurso a estratégias de redução de riscos e minimização de danos. No caso dos idosos que já perderam a mobilidade funcional, é fácil, basta tirar-lhes os doces. A sua situação não lhes permite recuperarem-nos pelos seus próprios meios e os protestos são, em virtude da vulnerabilidade decorrente da dependência física, tíbios e inconsequentes. Mas, no caso dos idosos que podem fazer valer os seus direitos, o processo é difícil, psicologicamente exigente e pode envolver confrontação física. Não é demais recordar que, apesar da mentalidade cartesiana ainda dominantes na nossa sociedade, o cérebro é parte do corpo e, tal como o resto dos órgãos, envelhece, pelo que não é incomum alguns dos idosos já não compreenderem que o melhor para eles é abdicarem da sua vontade, deixarem-se neutralizar por quem tem a formação adequada para o fazer. Assim, a solução passa por sensibilizar as famílias para esta questão. As técnicas auxiliares de geriatria são pessoas que escolheram trabalhar por amor mas, para a miséria que ganham, já muito aturam elas.

* Técnica auxiliar de geriatria