A tomada de posse do novo arrumador transfigurou o estacionamento das traseiras. Com cuidado e atenção, foi convertendo o que até há bem pouco podia ser descrito como um amontoado de carros que se distribuía sob o olhar desinteressado de um incompetente, num espaço clarificado, que respira — uma vista. Os condutores são agora pilotados de forma a que os veículos ocupem os espaços disponíveis paralelamente e de acordo com as suas dimensões, por vezes até por cores. Este arrumador não é, portanto, um simples toxicodependente, mas um Haussmann do estacionamento em espinha, uma pessoa dotada de uma invulgar visão de pássaro passível de ser apreciada apenas por quem, como eu, vê de cima tudo o que ali acontece. Apesar de não recorrer aos seus serviços, uma vez que disponho de uma garagem individual (box) com oitenta metros quadrados e casa de banho de serviço no estacionamento subterrâneo do meu prédio, já fui lá abaixo duas vezes dar-lhe uns cêntimos, sem palavras, sem explicações. Entrevi-lhe, no abandono da expressão, um vago sinal de gratidão pelo reconhecimento, por certo pouco habitual, não do seu estatuto, mas do que faz, do homem que se tornou.