Número 1

17 de Abril de 2021

Voar baixinho

Rita Serra

Talvez não seja do conhecimento geral, mas nem todos os animais conseguem voar. Ainda menos conhecidas são as diversas razões para esta suposta incapacidade: asas partidas, barrigas demasiado volumosas, caudas pesadas ou estranhos hábitos marinhos. De algum modo, aprendemos a achar que não voar configura algum tipo de injustiça natural ou social, mesmo que seja discutível considerar os peixes como deficientes (exceto, claro está, os peixes voadores) ou os ratos como Lumpenproletariat. Mas de todos os animais do planeta, que mesmo com a aceleradíssima taxa de extinção continuam a ser muitos e talvez suficientes para encher a arca de Noé (não fosse este um chauvinista obcecado com casais monogâmicos heterossexuais), o mais injustiçado de todos é o crocodilo.

Sem culpa, o crocodilo foi colocado numa família de pássaros, o que obviamente gera expetativas quanto ao desenvolvimento de capacidades aladas. Simultaneamente, dizem-lhe que tal foi há muito tempo, o que não só não diminui as expetativas, como gera um sentimento de perda da grandiosidade dos feitos passados. Seja por vergonha ou vingança, ninguém adivinha a idade dum crocodilo. Como não voa, está condenado a parecer velho, até mesmo pré-histórico, o que o aborrece ligeiramente porque talvez, como todos, tem um ego e sentimentos, e custa-lhe tamanha estupidez à face da terra.

A obrigação dum naturalista é ser fiel à realidade qualquer que ela seja. Este texto é um mínimo contributo para repor a verdade sobre esta tão maltratada espécie. De todos os crocodilos, interessa-nos particularmente o crocodilo de água salgada, Crocodylus porosus. Apesar de partilhar uma série de características com os crocodilos em geral, o crocodilo de água salgada é uma espécie singular.

Um crocodilo nunca é velho, apesar de alguns exemplares poderem viver até aos 100 anos, e tão pouco é pré-histórico. Por mais que nos custe aceitar, é uma espécie contemporânea dos seres humanos, e o grande mistério é como se consegue manter sem aparentar a idade. Sem querer expor a intimidade dos crocodilos, desvelamos apenas que a chave está nas presas de que se alimenta.

O crocodilo é considerado um predador oportunista que caça por emboscada. Consideram-no um ser pouco seletivo, capaz de comer tudo o que agarra com a sua bocarra. Mentira. Ao olharem para o que a sua dieta inclui, não olham para o que ela exclui. O crocodilo abomina frutas e legumes e aqui reside o segredo da sua juventude.

Qual é a diferença entre um macaco e uma pera, quando ambos pendem das árvores? Quem salta para agarrar uma cauda também salta para colher uma fruta. Então, qual a razão da recusa?

Apesar da sua grande boca, e dos seus poderosos dentes, o crocodilo segura mas não mastiga. Come os animais inteiros ou dança com eles até à morte na esperança de desprender pedaços. É desses pedaços que se alimenta e raramente tem pressa pois, como animal super-eficiente, não precisa de muito para viver. Esconde a presa no fundo dos rios, longe de outros predadores, e lentamente vai visitando o seu cadáver. Uma a uma, vai comendo as vísceras que se vão soltando da carne. Os estômagos, os cérebros, os intestinos. Sempre que possível, guarda o coração para o fim, porque é o que mais lhe custa a digerir.

Por esta prática, consideram-no um animal pouco sensível. Dizem-nos que só tem sensibilidade nos dentes. Mas o crocodilo de água salgada tem recetores pelo corpo todo.

O crocodilo de água salgada toca o mundo que o rodeia. Sente-o, e não é tocado de volta. Só é tocado a partir de dentro, pelas presas que engole.

Estranho paradoxo e condenação, só ter o toque perto da morte. É neste momento que ama e, quando isso acontece, chora.

Chorar enquanto come, eis a tristeza do crocodilo que nem Shakespeare conseguiu entender. Rotulado de hipócrita por seres tão centrados em si mesmos que não conseguem ver que nem todos os seres digerem os seus alimentos.

Silenciosamente, move-se parecendo parado, come parecendo sem fome e chora parecendo insensível. Integra os seres que engole, assimila-os como se fosse um fungo, e quase derrota o tempo até que morre.

É assim que voa baixinho, abaixo do radar, ofuscado pelas penas de quem só vê nele malas, carteiras e sapatos.

O crocodilo salgado gosta de sal, porque o sal toca-o por dentro e por fora, e chora-o de volta para que tudo comece de novo.