Passeio pela praia contrariando o prazo da escrita. Perante a apatia que se instalou nos dedos e um certo cansaço dos olhos, fujo das palavras e de tudo o que elas representam. Como a cidade, também elas se esvaziam na sobreexposição dos dias longos. Onde a luz chega, a substância desvanece. Prevalece uma sensação de claridade extrema que esclarece tudo, como se não houvesse espaço para duvidarmos das coisas, para as condenarmos a imagens ambíguas e nos envergonharmos delas. Na praia nada parece contrariar esta sensação. A nortada expulsou os veraneantes e a maioria dos pássaros. Apenas sobrevivem na paisagem as plantas rasteiras que dançam nas dunas, a crispação do mar e os seixos que rolam na comprida língua das ondas. O excesso de luz semicerra os olhos e desvia a atenção para o chão, onde esta se espalha no brilho de cada grão. A praia abre-se numa planície dourada, com a maré cheia a esconder todas as rochas, como se de um segredo se tratasse (e trata). Na linha contínua entre a areia e a água, não sobram lugares opacos ou cavidades onde enterrar as unhas. Está tudo à superfície, no simulacro de céu e terra, definidos na espessura de uma goma que os une numa fina camada de sal. O mar lambe a terra, voraz, roubando e devolvendo-lhe os pequenos seixos que rolam pela rampa que, por sua vez, desaparece na espuma. Nessa sequência de eventos repetitivos (o assobio do vento, o rombo do mar, a percussão das pedras) despontam pequenos objectos esquecidos na praia. Os pequenos seixos que se arredondaram com o tempo, embatendo uns nos outros no vaivém das ondas, cravam-se no quadro da atenção apesar da violência dos elementos a fustigar a praia. A pouco e pouco, sobressaem no chão objectos de escala incerta, medalhas representativas de outros mundos, ou mesmo miniaturas de mundo, à medida que nos aproximamos delas. Se nada parecia destacar-se neste lugar onde ar, luz, água e terra competem numa espiral brilhante e ruidosa, é precisamente essa agressão que instiga os olhos a esconderem-se por detrás das pálpebras e a encarar o chão, permitindo descobrir na brancura reluzente da praia estes pequenos mistérios que os pés evitam. E, de repente, o marasmo que atirara as palavras para longe e fazia desta página uma prova de esforço, transforma-se num turbilhão de cores, de formas, de ideias e de projectos a rolarem pelo rosto abaixo como uma forte chuva mineral. Em êxtase, retiro do molhe de pedras que deslizam nas ondas, uma lágrima cinzenta. Uma lágrima feita de uma matéria translúcida, vaporosa e dura, opaca mas plena de luminosidade. Oval, na palma da mão, tem a força de um pranto. Não há cinza mais triste e vivo que esta pedra. Ténues imperfeições no seu interior confirmam a transparência da sua massa vítrea. Recolho-a no bolso e logo me deparo com outra incógnita: uma pérola laranja, côr de âmbar. Um tipo de resplandecência sem exterior, como se tivesse absorvido o Sol e o transformado no seu líber ― uma carne luminosa, mas despida da sua casca. Um minério onde sobrevivem todas as seivas das grandes florestas que ardem, todos os dias, num crepúsculo marinho. Outra onda traz um pequeno botão negro. É uma pedra disforme cuja escuridão lhe esconde as indefinições. Sem sombras, não se lhe reconhecem as arestas. Navega entre as outras pedras destacando-se pelo seu contraste. É imune ao excesso de luz. O brilho da praia não entra neste mundo. Poder-se-ia dizer que é uma realidade distante, mas embate nas outras com a mesma força. Outra onda, outro astro: gira, redonda, uma cereja entre frutos celestes. Amadureceu como o sangue, dotada de um vermelho jurássico. Ninguém resistiria a este rubro que infesta a costa. Traz consigo a promessa de vingança, numa próxima caminhada, enquanto grita agora. Também a trago comigo, junto dos outros restos de sistema solar: luas, anéis, pós e outras matérias estelares que rodeiam a praia. Poderia continuar infinitamente. Colecciono as pequenas pedras movido por um instinto inexplicável. Sinto que as posso fotografar, alargar-lhes a escala, transformá-las em grandes planos-planetas e dissecá-las na forma de texto. Escrever-lhes rios e oceanos, grandes vales e glaciares. Inventar-lhes sentidos e poderes e destinos. Mentir quanto à sua origem e ser condenado por aqueles que acendem velas pela verdade. Colocá-las na mesa da sala e olhar para elas nos dias que seguem esta loucura, esperando que respondam ao porquê de estarem ali. Se fosse poeta, dedicaria um verso a cada uma delas. Ampliava-as ao ponto de projectarem a sua sombra sobre mim, de serem a atmosfera onde respiro, e, por fim, reencontrar, nas nuances de cada um desses corpos pétreos, a praia certa para voltar a escrever sobre o vazio revolto do plano aberto (demasiado aberto) da vida.